Você tem garantias e direitos, portanto, conte com o seu Advogado de confiança para defendê-lo (a)
Notícias
Artigos
Obstrução de investigação de Organização Criminosa - 09/07/2018
Obstrução de investigação de Organização Criminosa (Aqui não faremos um estudo abrangente da Lei 12.850/13. As nossas considerações cingir-se-ão à análise das inconstitucionalidades e inconsistências dogmáticas do Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 (delito de obstrução de investigação de organização criminosa); Inconstitucionalidade do Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 por violação do princípio da taxatividade (nullum crimen nulla poena sine lege certa); Dispõe o Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 que incorre nas mesmas penas do delito de organização criminosa (Art. 2º, caput, da Lei 12.850/13) aquele que “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”. Não é preciso nenhum sacrificium intellectus (basta uma leitura in ictu oculi!) para perceber-se que se trata de preceito penal absolutamente indeterminado, por não estabelecer minimamente quais condutas encontram-se proibidas. O problema agrava-se ainda mais com a utilização da cláusula geral “de qualquer forma”. O grau de indeterminação do referido preceito é tal que mesmo condutas absolutamente insuspeitas ser-lhe-iam tout court subsumíveis. Tome-se o seguinte exemplo, que nos serve como uma espécie de reductio ad absurdum: o advogado que impetrasse habeas corpus para trancar inquérito policial em que se investiga eventual infração penal que envolve organização criminosa estaria realizando conduta subsumível ao Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Sim, pois estaria embaraçando, é dizer, criando dificuldades ou obstáculos a tal investigação. E mais: se for exitoso, é dizer, se conseguir efetivamente o trancamento do inquérito policial, terá impedido a investigação. Por óbvio, aqui não se ignora que, na realidade, não subsistiria crime algum, pois o advogado estaria agindo no exercício regular de um direito(Art. 23, III, do CP). Entretanto, o que se quer demonstrar com tal exemplo (repita-se, numa espécie de reductio ad absurdum) é que a indeterminação do preceito legal em comento pode nos conduzir a exegeses esdrúxulas e situações disparatadas, com enorme risco para a segurança jurídica; Justamente por violar o princípio da taxatividade (nullum crimen nulla poena sine lege certa), consectário lógico do princípio da legalidade (Art. 5º, XXXIX, da CF), sustenta-se aqui a flagrante inconstitucionalidade do tipo penal em questão; O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de observar que a legalidade penal consiste em “(…) ato-condição da descrição de determinada conduta humana como crime, e, nessa medida, passível de apenamento estatal, tudo conforme a regra que se extrai do inciso XXXIX do Art. 5º da CF, ipsis litteris: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. (…) a norma criminalizante (seja ela proibitiva, seja impositiva de condutas) opera, ela mesma, como instrumento de calibração entre o poder persecutório-punitivo do Estado e a liberdade individual. (…) a norma estatal que descreve o delito e comina a respectiva pena atua por modo necessariamente binário, no sentido de que, se, por um lado, consubstancia o poder estatal de interferência na liberdade individual, também se traduz na garantia de que os eventuais arroubos legislativos de irrazoabilidade e desproporcionalidade se expõem a controle jurisdicional”; Portanto, como se vê, também a Suprema Corte brasileira impõe ao legislador o devido respeito ao princípio da legalidade (Art. 5º, XXXIX, da CF), admitindo, inclusive, o controle de constitucionalidade de preceitos penais que o violem por qualquer razão; Alguns critérios têm sido utilizados para aferir se um preceito penal indeterminado ultrapassa o limite daquilo que se considera tolerável (em razão, repita-se, das características da linguagem ordinária e da impossibilidade do legislador renunciar à utilização de elementos valorativos), terminando por violar o princípio da taxatividade (nullum crimen nulla poena sine lege certa). Um dos critérios mais festejados pela doutrina, e provavelmente o mais seguro deles, reza o seguinte: um enunciado penal indeterminado deverá ser considerado inconstitucional sempre que o legislador dispusesse da possibilidade de uma redação legal mais clara e precisa. Ora, a aplicação do referido critério ao Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, não deixa qualquer dúvida a respeito de sua inconstitucionalidade. Com efeito, é inegável que o legislador tinha a possibilidade de formular o tipo penal em questão de modo muito mais claro e determinado, enunciando aquelas condutas que, a seu ver, poderiam configurar tal crime. Note-se que, para tanto, não seria necessário qualquer esforço: bastaria que tivesse tomado como parâmetro o próprio Art. 23 da Convenção de Palermo (United Nations Convention Against Transnational Organized Crime), que contém uma adequada proposta de formulação do tipo penal de obstruction of justice. Confira-se: “Article 23. Criminalization of obstruction of justice. Each State Party shall adopt such legislative and other measures as may be necessary to establish as criminal offences, when committed intentionally: (a) The use of physical force, threats or intimidation or the promise, offering or giving of an undue advantage to induce false testimony or to interfere in the giving of testimony or the production of evidence in a proceeding in relation to the commission of offences covered by this Convention; (b) The use of physical force, threats or intimidation to interfere with the exercise of official duties by a justice or law enforcement official in relation to the commission of offences covered by this Convention. Nothing in this subparagraph shall prejudice the right of States Parties to have legislation that protects other categories of public officials”; Note-se que o referido dispositivo faz menção a condutas (empiricamente constatáveis) que poderiam configurar o crime em questão, ao contrário do Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, que a pretexto de defini-lo, acaba incorrendo numa tautologia: dá-se o crime de impedimento ou embaraçamento de investigação de organização criminosa quando alguém impede ou embaraça investigação que envolve organização criminosa! Um completo nonsense! Em suma: tendo-se verificado que o legislador dispunha de total condição de ofertar ao Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 uma redação muito mais clara e precisa (bastando, para tanto, uma simples leitura do Art. 23 da Convenção de Palermo), pode-se concluir pela sua manifesta inconstitucionalidade, por violação do princípio nullum crimen nulla poena sine lege certa (Art. 5º, XXXIX, da CF); Mas não é só: para além do critério, que acabamos de expor, da “maior precisão possível”, há ainda outro bastante conhecido, adotado pela Corte Constitucional alemã. De acordo com este tribunal, as exigências de precisão de um tipo penal devem aumentar com o quantum da pena nele previsto. Muito embora não se esteja de acordo com tal critério, já que, segundo nos parece, não há qualquer razão para o abrandamento das exigências de taxatividade quando a pena cominada ao delito é diminuta, o certo é que ele também nos mostra a inconstitucionalidade do Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Sim, pois, de acordo com tal critério, um tipo penal cuja pena é elevada (a mesma do delito de organização criminosa, reclusão de três a oito anos e multa) deveria estar formulado com grande precisão. Mas o que se verifica é exatamente o contrário: um tipo absolutamente indeterminado!; Inconstitucionalidade do Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 por violação do princípio da proporcionalidade; Como expressão do Direito Penal do Inimigo, o Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 viola o princípio da proporcionalidade, ao estabelecer para o delito de impedimento ou obstrução de investigação criminal a mesma pena do delito de organização criminosa (Art. 2º, caput, da Lei 12.850/13), qual seja, reclusão de 03 (três) a 08 (oito) anos, e multa. Muito embora se pudesse chegar a tal conclusão quase que intuitivamente, pois não se mostra minimamente razoável estabelecer as mesmas penas para condutas de gravidade díspar, quer-se aqui explicitar algumas premissas teóricas necessárias para se alcançar tal resultado com absoluto rigor; O princípio (constitucional) da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip), em sua vertente de proibição de excesso (Übermassverbot), consubstancia critério de controle de medidas estatais restritivas a Direitos Fundamentais. Doutrina e jurisprudência costumam considerar que o princípio da proporcionalidade lato sensu compõe-se dos seguintes subprincípios: idoneidade, necessidade e proporcionalidade stricto sensu. Assim, a restrição a um Direito Fundamental somente será admissível se for idônea, é dizer, se tiver a capacidade de alcançar o fim perseguido; se for necessária, é dizer, se não houver nenhum meio menos gravoso e igualmente eficaz para alcançá-lo; e, finalmente, se for proporcional stricto sensu, ou seja, se o benefício visado for maior que o custo que resulta da intromissão no Direito Fundamental; Como toda intervenção penal (desde a tipificação de um delito até a imposição de uma pena e sua execução) implica na restrição a Direitos Fundamentais, a sua legitimidade estará condicionada ao teste de proporcionalidade lato sensu. Enquanto as exigências de idoneidade e necessidade correlacionam-se com os princípios da utilidade da intervenção penal, subsidiariedade (ultima ratio) e fragmentariedade (intervenção mínima), a exigência de proporcionalidade stricto sensu vincula-se diretamente com a pretensão de equilíbrio entre a gravidade do delito e a gravidade da pena; Concentremo-nos no subprincípio da proporcionalidade stricto sensu, pois o que aqui se sustenta é o desequilíbrio entre a gravidade do delito tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 e a pena a ele cominada. Uma técnica bastante utilizada para verificar-se a proporcionalidade ou não da pena cominada a um delito consiste na realização de uma tertium comparationis: toma-se um determinado tipo penal como parâmetro, é dizer, como termo de comparação para o julgamento. Aqui, por óbvio, nosso tertium comparationis será o Art. 2º, caput, da Lei 12.850/13 (delito de organização criminosa), mesmo porque o § 1º do referido artigo estabelece que “Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”. Trata-se, portanto, de demonstrar que, embora se tenha cominado para o delito de impedimento ou obstrução de investigação criminal (Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13) a mesma pena do delito de organização criminosa (Art. 2º, caput, da Lei 12.850/13), aquele é muito menos grave do que este, razão pela qual a cominação da mesma pena a ambos viola o princípio da proporcionalidade stricto sensu; O primeiro elemento a ser levado em consideração no exame da gravidade de um delito é a relevância do bem jurídico lesionado. Já aí se pode constatar que o delito de organização criminosa (Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13) é infinitamente mais grave do que o delito de impedimento ou obstrução de investigação criminal (Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13), pois enquanto aquele atinge múltiplos interesses coletivos que podem ser heuristicamente reunidos sob a noção de «paz ou ordem pública», este somente afeta à administração da justiça. Muito embora se trate de conceito bastante obscuro e de difícil precisão, boa parte da doutrina costuma identificar a «paz ou ordem pública» com a salvaguarda conjunta da segurança coletiva, do livre exercício dos direitos e liberdades dos cidadãos, e do normal funcionamento dasinstituições democráticas; Como se vê, o bem jurídico «paz ou ordem pública» abarca múltiplos bens jurídicos coletivos, inclusive a própria «administração da justiça». Ora, se é assim, não se pode cominar ao delito de impedimento ou obstrução à investigação criminal (Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13), que, repita-se, somente lesiona o bem jurídico «administração da justiça», a mesma pena do delito de organização criminosa (Art. 2º, caput, da Lei 12.850/13), que, insista-se, atinge múltiplos bens jurídicos (reunidos sob a rubrica «paz ou ordem pública»), inclusive a própria administração da justiça. Tem-se aí a mesma pena para delitos de gravidade bem distinta, o que, por óbvio, implica em patente violação ao princípio constitucional da proporcionalidade; O Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 e o princípio do nemo tenetur se ipsum accusare; Como manifestação do Direito Penal do Inimigo, o Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 desrespeita o vetusto princípio do nemo tenetur se detegere ou nemo tenetur se ipsum accusare. Em nosso entorno, tem-se considerado que o princípio nemo tenetur se detegere funda-se na conjunção dos princípios da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, da CF), do devido processo legal (Art. 5º, LIV, da CF), da ampla defesa (Art. 5º, LV, da CF) e da presunção de inocência (Art. 5º, LVII, da CF). O direito ao silêncio, expressamente consagrado no Art. 5º, LXIII, da CF, constitui apenas uma das dimensões de tal princípio, cuja abrangência é significativamente maior; Ao longo dos anos, o Supremo Tribunal Federal tem buscado, com notável esmero, revelar as múltiplas facetas do poliédrico princípio nemo tenetur. Assim, já em 1991, no HC 68.929/SP, observou que o referido princípio abrange não somente o direito ao silêncio (Art. 5º, LVII, da CF), como também “a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal”. Em 2001, no HC 80.949/RJ, assestou que “O privilégio contra a auto-incriminação – nemo tenetur se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição – além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do Art. 186 C. Pr. Pen. – importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência – e da sua documentação formal – faz ilícita a prova que, contra si mesmo forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em ‘conversa informal’ gravada, clandestinamente ou não”. E em 2009, ao julgar o HC 99.289/RS, aquela Egrégia Corte, mostrando admirável capacidade analítica, proclamou: “Abrangência da cláusula constitucional do ‘due process of law’, que compreende, dentre as diversas prerrogativas de ordem jurídica que a compõem, o direito contra a autoincriminação. A garantia constitucional do ‘due processo of law’ abrange, em seu conteúdo material, elementos essenciais à sua própria configuração, dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (…) (m) direito de não se autoincriminar nem de ser constrangido a produzir provas contra si próprio (…). Alcance e conteúdo da prerrogativa constitucional contra a autoincriminação. A recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a autoincriminação, especialmente quando se tratar de pessoa exposta a atos de persecução penal. O Estado – que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus, como se culpados fossem, antes do trânsito em julgado de eventual sentença penal condenatória (RTJ 176/805-806) – também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512), em face da cláusula que lhes garante, constitucionalmente, a prerrogativa contra a autoincriminação. Aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado tem, dentre outras prerrogativas básicas, (a) o direito de permanecer em silêncio, (b) o direito de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem de ser constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) o direito de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada (reconstituição) do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais para efeito de perícia criminal (…)”.; Mais recentemente, ao julgar o HC 122.279/RJ, o Supremo Tribunal Federal, tomando por base não somente a sua histórica jurisprudência já referida, como também os ensinamentos de insignes juristas nacionais e internacionais, assinalou que: “O direito ao silêncio, que assegura a não produção de prova contra si, constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade da pessoa humana. Como se sabe, na sua acepção originária conferida por nossa prática institucional, este princípio proíbe a utilização ou a transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentários ao Art. 1º da Constituição alemã, Günther Dürig afirma que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck, 1990, 1/18); ; A Constituição Federal consagra expressamente o direito do preso de ser informado do seu direito de permanecer calado – Art. 5º, LXIII; No entanto, como ensina Paulo Mário Canabarro Trois Neto, o direito à não autoincriminação tem fundamento mais amplo do que o Art. 5º, LXIII, da Constituição Federal. Em verdade, o direito é derivado da “união de diversos enunciados constitucionais, dentre os quais o do Art. 1, III (dignidade humana), o do Art. 5º, LIV (devido processo legal), do Art. 5º, LV (ampla defesa), e do Art. 5º, LVII (presunção de inocência)” (Direito à não autoincriminação e direito ao silêncio. Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2011, p. 104); Ainda sobre o tema, colho o estudo doutrinário de Aury Lopes Jr.: ‘O direito de silêncio está expressamente previsto no Art.5º, LXIII, da CB (o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (…). Parece-nos inequívoco que o direito ao silêncio aplica-se tanto ao sujeito passivo preso como também ao que está em liberdade. Contribui para isso o Art. 8.2, g, da CADH, onde se pode ler que toda pessoa (logo, presa ou em liberdade) tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma nem a declarar-se culpada. Ao estar assegurado o direito de silêncio sem qualquer reserva na Constituição e na Convenção Americana de Direitos Humanos, por lógica jurídica, o sistema interno não pode atribuir ao seu exercício qualquer prejuízo. (…) (…) O direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório. Sublinhe-se: do exercício do direito de silêncio não pode nascer nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurídico para o imputado. Como explica FERRAJOLI, o princípio nemo tenetur se detegere é a primeira máxima do garantismo processual acusatório, enunciada por Hobbes e recepcionada, a partir do século XVII, no Direito inglês. Dele seguem-se, como corolários, na lição de FERRAJOLI: a) a proibição da tortura espiritual, como a obrigação de dizer a verdade; b) o direito de silêncio, assim como a faculdade do imputado de faltar com a verdade nas suas respostas; c) a proibição, pelo respeito devido à pessoa do imputado e pela inviolabilidade da sua consciência, não só de arrancar a confissão com violência, senão também de obtê-la mediante manipulações psíquicas, com drogas ou práticas hipnóticas; d) a conseqüente negação de papel decisivo das confissões; e) o direito do imputado de ser assistido por defensor no interrogatório, para impedir abusos ou quaisquer violações das garantias processuais’ (Lopes Jr., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 231-232)”; Pois bem. Inegavelmente, o Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 tem como objetivo central coagir supostos autores de um delito de organização criminosa (Art. 2º, caput, da Lei 12.850/13) a se absterem de realizar comportamentos que possam minimamente dificultar a investigação desta infração penal e de outras a ela relacionadas. Ocorre que alguns desses comportamentos, muito embora pudessem ser vistos tout court como configuradores do delito tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, por criarem obstáculos à investigação, certamente encontram-se abarcados pelo princípio constitucional do nemo tenetur se detegere. Acaso ver-se-ia todo e qualquer investigado por suposta participação numa organização criminosa compelido a confessar perante a autoridade policial a prática desta infração penal e de outras a ela correlatas, comparecer à reconstituição de fatos, fornecer documentos para exames grafotécnicos etc., sob pena de incorrer no delito tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13? A pergunta, por óbvio, tem caráter meramente retórico, pois, repita-se, se assim fosse estar-se-ia infringindo a garantia constitucional de que ninguém é obrigado a se autoincriminar. O Direito não pode consentir que um investigado permaneça indefeso diante dos órgãos de persecução estatal; não pode inseri-lo num contexto que acaba por se equiparar a um dever de contribuir para a sua própria incriminação!; Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 como post factum impunível em relação ao Art. 2º, caput, da Lei 12.850/13; No item anterior vimos que alguns comportamentos passivos de investigados por um delito de organização criminosa seriam tout court subsumíveis ao Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Adicionalmente, observamos que, muito embora tais comportamentos pudessem ser vistos, em tese, como obstáculos à investigação do delito de organização criminosa e de outros a ele relacionados, o certo é que se encontram abarcados pelo princípio constitucional do nemo tenetur se detegere. Comportamentos ativos, por sua vez, não estariam abrangidos, em tese, por este princípio; Entretanto, parece-nos que diversos comportamentos ativos de membros de organização criminosa que poderiam, em tese, configurar o delito tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 encontram-se inseridos na categoria dos «fatos posteriores impuníveis». Trata-se, portanto, de uma hipótese de concurso aparente de normas, que deve ser solucionada aplicando-se o critério da consunção. É o que se passa a demonstrar; Um post factum impunível pode ser conceituado como um fato que por si só realizaria um tipo penal, mas que por constituir, simplesmente, uma forma de asseguramento ou desfrute de um benefício (ilícito) obtido com a prática de delito anterior, acaba sendo por ele consumido. Pode-se dizer, com Roxin, que “o asseguramento ou desfrute da posição obtida com o fato delitivo prévio é um comportamento tipicamente vinculado a ele e, portanto, não necessitado de pena”. O conteúdo de injusto do delito anterior abarca o conteúdo de injusto do post factum, de forma que a punição do primeiro delito já esgota e expressa o desvalor conjunto dos fatos. Punir, autonomamente, o post factum constituiria evidente violação do princípio ne bis in idem. A doutrina e a jurisprudência (alienígena) costumam mencionar pelo menos dois pressupostos para a existência de um post factum impunível: em primeiro lugar, o post factum não deve vulnerar nenhum bem jurídico distinto daquele atingido com o delito anterior; ademais, o post factum não deve agravar o dano produzido pelo delito anterior; Pois bem. Analise-se agora, à luz de tais considerações, a hipótese de membro de organização criminosa que também pratica conduta em tese configuradora do delito tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13. Deverá responder por ambos os delitos? Antes de oferecermos uma resposta, duas observações se impõem: em primeiro lugar, é de se notar que com a prática ulterior do referido delito não se estará vulnerando qualquer outro bem jurídico: o Art. 2º, caput, da Lei 12.850/13 protege múltiplos bens jurídicos, entre eles a administração da justiça; o bem jurídico protegido pelo Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 é justamente a administração da justiça. Ademais, assinale-se que a prática do delito tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 não implica qualquer agravamento do dano produzido pelo delito anterior; Como se pode constatar, o conteúdo do injusto do delito de organização criminosa abrange o conteúdo do injusto do delito tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, razão pela qual a punição daquele delito já esgota e expressa o desvalor de ambos os fatos. Evidência do que se diz é que a doutrina costuma apontar como uma das características do fenômeno da organização criminosa o emprego de meios para dificultar ou até mesmo impedir a sua descoberta. Aliás, no XVI Congresso Internacional da AIDP intitulado “Os sistemas penais ante o desafio do crime organizado”, celebrado em Budapeste (Hungria) em setembro de 1999, chegou-se à conclusão de que entre as características típicas de uma organização criminosa encontra-se “a capacidade de neutralizar os esforços de aplicação da lei”. Da mesma forma que a doutrina, a jurisprudência também tem considerado como um dos traços do fenômeno da organização criminosa o emprego de meios para subtrair-se da persecução penal. O Colendo Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, ao julgar o HC 30.048/AM, ressaltou como características de uma “organização criminosa” o “(…) forte poder econômico, de articulação e mobilização, com força suficiente para embaraçar o curso processual (…)”. Esclareça-se que muito embora o Art. 1º, § 1º, da Lei 12.850/13 não inclua entre os elementos da definição legal de organização criminosa “o emprego de meios para embaraçar ou mesmo impedir a persecução penal”, esta é uma de suas características acidentais; Excursus: Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 e Comissões Parlamentares de Inquérito; Imagine-se a seguinte hipótese: particular oferece vantagem indevida a parlamentar para que este encerre as investigações que se desenvolvem no âmbito de uma CPI. O parlamentar a aceita e realiza uma série de ações nesse sentido. Indaga-se: para além dos delitos de corrupção ativa e passiva, praticados, respectivamente, pelo particular e pelo parlamentar, estaria ainda configurado o crime tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13? Parece-nos que não; Note-se bem: o Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 estabelece que incorre nas mesmas penas do delito de organização criminosa aquele que “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”. Ocorre que as Comissões Parlamentares de Inquérito não possuem poder de investigação de infração penal. Podem (e devem!), sim, investigar fato de relevância político-institucional, mas que não constitua crime. Por óbvio, é concebível que no curso dos trabalhos da Comissão algum delito seja ocasionalmente descoberto (daí a previsão do Art. 58, § 3º, da CF de que as conclusões possam ser encaminhadas ao Ministério Público para a promoção da responsabilidade criminal dos seus autores), mas, insista-se, as investigações de uma CPI não se destinam a tanto. Em suma: Comissões Parlamentares de Inquérito não possuem finalidade persecutória; Esse é o exato entendimento do Supremo Tribunal Federal. De fato, já no julgamento do HC nº 71.039/RJ, esta Egrégia Corte proclamou: “A comissão parlamentar de inquérito se destina a apurar fatos relacionados com a administração, Constituição, Art. 49, X, com a finalidade de conhecer situações que possam ou devam ser disciplinadas em lei, ou ainda para verificar os efeitos de determinada legislação, sua excelência, inocuidade ou nocividade. Não se destina a apurar crimes nem a puni-los, da competência dos Poderes Executivo e Judiciário; entretanto, se no curso de uma investigação, vem a deparar fato criminoso, dele dará ciência ao Ministério Público, para os fins de direito, como qualquer autoridade, e mesmo como qualquer do povo. Constituição, Art. 58, § 3º, in fine”; Em outra oportunidade, o Supremo Tribunal Federal voltou a advertir que uma Comissão Parlamentar de Inquérito “não se destina a apurar crimes nem a puni-los”. Por isso mesmo, na hipótese aventada restariam configurados apenas os delitos de corrupção ativa e passiva, mas não o delito tipificado no Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13, pois não se estaria embaraçando investigação de infração penal, mas sim investigação de caráter político-institucional (de natureza distinta, portanto); Uma triste, porém inevitável conclusão: Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 como manifestação de um Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht); A exposição que se acaba de fazer não deixa dúvidas a respeito do acerto de nossa hipótese inicial de trabalho: o Art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13 viola uma série de garantias constitucionais, devendo ser considerado como clara manifestação, no ordenamento jurídico pátrio, de um ignominioso e aviltante Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht). Quod erat demonstrandum) https://www.jota.info/especiais/reflexao-critica-obstrucao-de-investigacao-de-organizacao-criminosa-03102016