Adoção: “A gente não quer escolher, a gente quer simplesmente ter um filho”
“Me chamo Mikely e tenho 13 anos. Eu fui adotada com 4 anos”, conta, resoluta, a pré-adolescente. “Meu pai se chama Otávio e a minha mãe se chama Márcia, e eu tenho um irmão mais velho, que se chama Rodrigo”, ela completa. Mikely tem a apresentação da família na ponta da língua. Ela já repetiu essas frases muitas vezes nos grupos de apoio à adoção onde os pais compartilham um pouco da própria história — a história de como Mikely entrou em suas vidas.
Quando, ainda crianças, a professora Márcia Erondina e o contabilista Otávio da Silva frequentavam a mesma igreja, eles não imaginavam que, adultos, seus caminhos se cruzariam novamente e eles formariam uma família. Ao se reencontrarem, Otávio já tinha um filho, Rodrigo, um jovem com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Após enfrentar dificuldades para engravidar, o casal decidiu se habilitar para adoção no município de Esteio/RS, onde mora.
Ao preencherem a ficha de pretendentes do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), Márcia e Otávio optaram por não restringir os campos de gênero, raça, deficiência e problemas de saúde. “A gente entendeu que seria injusto colocar alguma restrição porque, quando vem da barriga, não existe restrição. Isso nos foi muito questionado pela assistente social na época: “Vocês têm certeza?” “Sim. A gente não quer escolher, a gente quer simplesmente ter um filho”, resume Otávio.
A única condicionante do casal foi a idade. A ideia era possibilitar um laço de companheirismo com o irmão, hoje com 19 anos. “Na época ele tinha 10 anos, e a idade mental dele era de 4-5 anos. A gente colocou a faixa etária de até 5 anos porque com essa idade eles teriam uma aproximação”, explica Otávio. Além disso, uma última decisão: “Nós decidimos que, na primeira ligação, nós não diríamos não. Seria o nosso filho”, diz Márcia.
Sete meses mais tarde, no dia 7 de abril de 2016, o telefone tocou. “A psicóloga me ligou e disse: “Sou da comarca de Porto Alegre, a gente tem uma menina para adoção, e queríamos saber do teu interesse, ainda está válido?” Eu disse: “Claro! Imediatamente! Eu já posso buscar a minha filha? E aí ela começou a dar os detalhes…”, relembra Otávio, emocionado.
“A informação que recebemos era de que nós tínhamos uma menina de 4 anos e 8 meses com uma síndrome rara nos ossos”, completa Márcia. A menina era Mikely, que é portadora da síndrome de McCune-Albright, uma doença genética rara que afeta a pele, as glândulas endócrinas e os ossos. A condição de saúde de Mikely demandava – e demanda ainda hoje – cuidados específicos. Por isso, o primeiro encontro entre o casal e a filha se deu em um hospital, onde ela recebia uma medicação. “Nós íamos visitá-la todos os dias”, recorda Otávio, que se deslocava até Porto Alegre ao lado da esposa. Um mês depois, eles obtiveram a guarda provisória e Mikely pôde ir para casa.
Com o dia a dia, a menina construiu uma relação de cuidado e amizade com o irmão. Foi ela, por exemplo, quem o ajudou a perder o medo do mar, lembrança narrada com emoção pelo pai. “A parceria dos dois é muito linda”, conta Márcia. “Aquele nosso projeto de aproximação de idades foi excelente”, celebra Otávio. Um momento desafiador veio quando Mikely estava prestes a completar dois anos como parte da família. Isso porque ela nunca havia ficado no mesmo local por mais de dois anos. “Um dia, ela perguntou se, caso ela incomodasse muito, a gente iria devolvê-la. Essa fala veio aos 6 anos de idade. A gente disse: “Não. Tu podes incomodar muito, fazer o que tu fizeres, tu vais continuar sendo nossa filha”. Com o laço familiar seguro e apesar das dificuldades, Mikely é uma menina corajosa, sociável, que gosta de estudar português e artes, e sonha em viajar para Paris, Rio de Janeiro e Canadá.
Márcia e Otávio aprenderam que o preparo dos pretendentes é essencial para o êxito do processo de adoção. “A gente aprendeu com o tempo que as burocracias são necessárias. É muito importante os pais e as mães estarem comprometidos com a adoção”, diz Otávio. “A preparação jurídica, social e psicológica dos pretendentes é fundamental. É quando a gente realmente vai prepará-los para adotar e desconstruir mitos e a questão da criança ideal”, explica Graziela Milani, assistente social e integrante da equipe que atua no SNA. “Muitas pessoas inicialmente vêm para a adoção pensando que vão fazer uma caridade ou para preencher algum espaço vazio. Mas a motivação adequada para adotar é querer ter um filho”, afirma.
O casal gaúcho não se arrepende de ter adotado com o perfil aberto. “Nós fomos muito contemplados pelo SNA. Não podia ser outra filha. A gente sempre diz que a gente ganhou a melhor filha que tinha”, derrete-se Márcia. “Foi a melhor coisa da minha vida. Eu ter a oportunidade de ir lá e dizer: “Eu quero adotar, e eu quero adotar de qualquer forma. O que vier, não importa”, complementa Otávio.
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Perfil de pretendentes do SNA
Existem hoje, no Brasil, 35.622 pretendentes aptos à adoção. Márcia e Otávio já fizeram parte desse grupo de pessoas. Com o intuito de compreender a amplitude do perfil de pretendentes, trazer celeridade às varas e melhorar a experiência dos usuários, está em desenvolvimento o novo módulo de pretendentes do SNA. Esse módulo acrescentará ao sistema informações mais precisas sobre as pessoas que planejam adotar no país, como características da família, dados básicos e gerais de pretendente solo e casal, histórico de habilitação, entre outros. “Esse módulo é revolucionário no sentido de que nós poderemos conhecer o perfil dos pretendentes que adotam no Brasil. Até o momento, a gente não sabia qual era a raça, a orientação sexual… São campos que vão nos permitir conhecer essa amplitude do perfil dos pretendentes”, explica Graziela Milani. O maior detalhamento dos pretendentes também facilita o processo de busca ativa. “Isso vai nos permitir traçar o perfil, fazer pesquisas para ampliar o estudo sobre os pretendentes, e poder direcionar campanhas”, exemplifica Graziela.
Das 4.947 crianças e adolescentes aptos para adoção atualmente no país, 976 (19,7%) possuem algum problema de saúde, enquanto 14,6% têm deficiência intelectual, 1,5% possui deficiência física, e 4,3% têm ambas. De acordo com dados do SNA, 95% dos pretendentes não aceitam crianças e adolescentes com deficiência, e 64,7% não aceitam crianças e adolescentes com algum tipo de doença. Em termos de raça, 69,6% das crianças e adolescentes aptos à adoção são pretos e pardos, enquanto 29,1% são brancos. Os dados completos podem ser acessados no Painel de Acompanhamento do SNA, que é atualizado diariamente.
“O SNA tem passado por constantes aprimoramentos, com a implementação de novos módulos e funcionalidades que integram tecnologia e humanização. O objetivo é assegurar que processos de adoção em todo o Brasil sejam conduzidos com a máxima transparência, sempre priorizando o bem-estar e a dignidade de crianças e adolescentes em busca de uma família”, destaca a juíza auxiliar da presidência do CNJ, Rebeca de Mendonça Lima.
Sobre o SNA
Regulamentado pela Resolução CNJ n. 289/2019, o SNA foi criado em 2019 da união do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA). O sistema abrange milhares de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, com uma visão global da criança, focada na doutrina da proteção integral prevista na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). Os maiores beneficiários do SNA são as crianças e os adolescentes em acolhimento familiar e institucional, que aguardam o retorno à família de origem ou a adoção.
O SNA possui um inédito sistema de alertas, com o qual os(as) juízes(as) e as corregedorias podem acompanhar todos os prazos referentes às crianças e aos adolescentes acolhidos e em processo de adoção, bem como de pretendentes. Com isso, há mais celeridade na resolução dos casos e maior controle dos processos, sempre no cumprimento da missão constitucional do CNJ.
Programa Justiça 4.0
Iniciado em 2020, o Programa Justiça 4.0 é fruto de um acordo de cooperação firmado entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), com apoio do Conselho da Justiça Federal (CJF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seu objetivo é desenvolver e aprimorar soluções tecnológicas para tornar os serviços oferecidos pela Justiça brasileira mais eficientes, eficazes e acessíveis à população, além de otimizar a gestão processual para magistrados, servidores, advogados e outros atores do sistema de Justiça.
Texto: Isabela Martel
Edição: Ana Terra
Agência CNJ de Notícias
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