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A nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869-19) e os limites ao interrogatório policial do preso durante o repouso noturno - 10/02/2020
A nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869-19) e os limites ao interrogatório policial do preso durante o repouso noturno (No dia 3 janeiro de 2020 entrou em vigor, após vacatio legis de 120 dias, a Lei Federal 13.869/2019[1], batizada Nova Lei de Abuso de Autoridade que, dentre vários tipos penais, em seu artigo 18, criminaliza a conduta de “submeter o preso a interrogatório policial durante o período de repouso noturno, salvo se capturado em flagrante delito ou se ele, devidamente assistido, consentir em prestar declarações”; Vislumbram-se, de início, cinco pontos controversos do referido artigo 18 da Lei 13.869/19, a seguir abordados; 1º) Abrangência do vocábulo “preso”: A primeira potencial controvérsia consiste em definir a abrangência do vocábulo “preso” na redação do tipo penal do artigo 18. Em outras passagens, a nova Lei de Abuso de Autoridade menciona “investigado” (arts. 10, 20, p.u., 25, p.u., 28, 29 e 31) e “detento” (Art. 13), ensejando, assim, caráter amplo ao objeto das normas, direcionando-as a situações distintas; Destarte, para uma interpretação teleológica, adotando como paradigma a Resolução 43/173, de 1988, da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabelece o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer forma de Detenção ou Prisão, a palavra “preso” restringe-se à pessoa privada de liberdade decorrente de condenação criminal. Nesses parâmetros, a figura penal do artigo 18 não miraria a pessoa meramente investigada, visto não estar “presa” e que, a rigor, também não é tecnicamente “interrogada” e sim ouvida em “declarações”[2]; No contexto descrito, o que o tipo penal pretende coibir, numa primeira avaliação, é o interrogatório noturno de pessoa já presa, seja por condenação, seja por ordem judicial abrangendo, assim, o preso temporário ou preventivo. Logo, seria o exemplo do custodiado que, no meio da noite, é sorrateiramente retirado da cela para ser submetido a um interrogatório policial; Nessa primeira discussão aventada para estabelecer o sujeito passivo da infração penal do artigo 18 do novel diploma, ampliado genericamente o conceito de “preso”, qualquer sujeito capturado ou detido estaria abarcado, o que não parece ser o propósito do legislador, na medida em que não mencionou de maneira específica termos como “investigado” ou “capturado” como o fez em outros dispositivos da nova lei. Já uma leitura em sentido mais técnico, delimita o sujeito passivo ao indivíduo condenado ou preso por ordem judicial (custodiado preventivo ou temporário); 2º) Limitação ao interrogatório de mérito: O segundo ponto que pode provocar alguma divergência encontra-se na extensão da vedação ao interrogatório policial no repouso noturno, mais precisamente em incidir tanto na primeira parte do ato, afeta aos dados qualificativos e à ciência do teor da imputação (“interrogatório de qualificação”), quanto na segunda parte do interrogatório, que compreende as respostas sobre os fatos propriamente ditos, vale dizer, sobre o mérito do evento apurado (“interrogatório de mérito”)[3]; Ressalta-se que, na etapa policial do processo penal, o interrogatório resulta da decisão de indiciamento exarada pelo Delegado de Polícia mediante ato fundamentado (Lei 12.830/13, Art. 2º, § 6º), em sede de despacho no curso de inquérito policial instaurado por portaria ou no corpo de auto prisional quando proferido por ocasião da decretação de prisão em flagrante delito[4]; Nota-se que a decisão de indiciamento funciona com um filtro para a formalização dos três atos dela resultantes, que são conhecidos pela expressão “formal indiciamento”, assim compreendidos: a qualificação e interrogatório (CPP, arts. 6º, V e 185 e ss.), a identificação (CPP, Art. 6º, VIII) e a obtenção de informações sobre a vida pregressa do indiciado (CPP, Art. 6º, IX)[5]. Por meio dos atos derivados da decisão de indiciamento o sujeito é cientificado dos fatos contra ele imputados e tem possibilidade de se manifestar e intentar medidas dentro do inquérito policial (defesa endógena) ou fora dos autos investigatórios por via judicial (defesa exógena)[6], de modo que o indiciamento deve ser visto como um marco a partir do qual sobretudo o direito de defesa pode e deve ser exercido[7]; Portanto, o interrogatório policial é precedido da decisão de indiciamento pelo Delegado de Polícia presidente do procedimento investigatório criminal e o que a nova lei parece proibir é o interrogatório objetivo, de mérito, afeto às perguntas sobre os fatos em si, quando promovido no “repouso noturno” e não exatamente a qualificação e a ciência da imputação (interrogatório de qualificação); Assim, o direito de permanecer calado, conhecido como autodefesa negativa, está atrelado ao interrogatório de mérito e não ao ato preliminar de qualificação pessoal, visto que a recusa ao fornecimento de dados sobre a própria identidade pode inclusive configurar contravenção penal (Decreto-lei 3.688/41, Art. 68)”[8]. São fases distintas. Qualificar e cientificar sobre a imputação não é proibido, sequer à noite. Aliás, esclarecer sobre os fatos imputados abrange relevante aspecto do direito de defesa, a viabilizar o conhecimento e a participação do investigado e de sua defesa técnica. Já o interrogatório de mérito, sobre o fato apurado (CPP, arts. 6º, V e 187, § 2º, incisos I a VIII), envolve a proteção objeto da figura penal do artigo 18 da nova lei; 3º) Conteúdo do elemento normativo “repouso noturno”: A terceira controvérsia do tipo penal do artigo 18 da Lei 13.869/19 reside na concepção do elemento normativo “período noturno”, não estabelecido na nova lei; Por analogia, despontam três caminhos como soluções. O primeiro é o do artigo 212 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/15), que dispõe que os atos processuais serão realizados em dias úteis, das 6 às 20 horas. O segundo critério, também de caráter objetivo, encontra-se no artigo 22, inciso III, da própria nova Lei de Abuso, que pune o cumprimento de mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21 horas e antes das 5 horas[9]. Já o terceiro caminho inclina-se a um critério psico-sociológico, alusivo aos costumes e convenções sociais, acompanhando compreensão conferida pela literatura jurídica da mesma expressão “repouso noturno” que figura como causa de aumento do delito de furto prevista no § 1º, do artigo 155 do Código Penal, que difere de lugar para lugar em razão da realidade e da vida noturna de cada localidade, associado ao interstício entre o pôr do sol e a aurora do dia subsequente[10]; Como se observa, se houver pormenorizada fundamentação da autoridade responsável inexiste delito de abuso, mormente enquanto não consolidado posicionamento sobre o conteúdo da expressão, à luz da vedação ao famigerado ilícito de hermenêutica, expressa no § 2º, do artigo 2º, da nova Lei 13.869/2019; 4º) Interrogatório de mérito do preso em flagrante delito: O quarto ponto questionável resulta da excepcionalidade ao interrogatório policial do preso em flagrante delito contida no artigo 18 da nova lei; Conquanto a redação legal autorize o interrogatório extrajudicial do autuado em flagrante ainda que no período do repouso noturno, é preciso cautela quando o indiciado manifestar o direito de quedar-se silente ou solicitar defesa técnica, oportunidade em que o interrogatório sobre os fatos (de mérito) será encerrado ou sobrestado, seguindo-se os demais trâmites da formalização; Oportuno lembrar que o artigo 15, em seu parágrafo único, incisos I e II, da nova Lei de Abuso de Autoridade criminaliza o ato de prosseguir com o interrogatório de pessoa que tenha decidido exercer o direito de silêncio ou daquele que tenha optado por ser assistido por Advogado ou Defensor Público. Logo, em tais circunstâncias, o auto de qualificação e interrogatório será formalizado, para fins de qualificação e ciência das garantias fundamentais, vedando-se, apenas, o interrogatório objetivo sobre os fatos imputados, constando a manifestação do interrogado de permanecer silente e aguardar ulterior orientação de defesa técnica; 5º) Natureza da assistência para o interrogatório policial: O quinto e último ponto discutível do artigo 18 da Lei 13.869/19 consiste no significado da expressão “devidamente assistido”, também não definido no novo diploma; Uma leitura possível seria no sentido de que, se a nova lei pretendesse restringir essa assistência a uma natureza jurídica, como sinônimo de defesa técnica, teria feito expressamente, como no texto do citado inciso II, do parágrafo único, de seu artigo 15; Para uma interpretação ampliativa, tal qual a antiga figura do curador nomeado para o indiciado maior de 18 e menor de 21 anos de idade, com base no artigo 15 do CPP, usual antes da reforma do Código Civil, que não era necessariamente um Advogado, a aludida “assistência” do artigo 18 da nova lei de abuso poderá ser realizada por familiar ou pessoa indicada pelo preso durante o interrogatório de mérito no período de repouso noturno, caso o interrogado deseje ofertar sua versão, exercendo assim sua autodefesa positiva; Hipóteses cotidianas: A seguir serão elencadas hipóteses rotineiras da atividade de polícia judiciária, acompanhadas de soluções sugestivas que, de acordo com as circunstâncias de cada evento, poderão ser adotadas e adaptadas; 1ª) Indivíduo capturado de madrugada em situação de flagrante delito no momento em que acabara de subtrair veículo na via pública. Conduzido à delegacia para a audiência de apresentação de garantias do artigo 304 do CPP, o Delegado de Polícia responsável considera presentes os requisitos legais e decreta a custódia flagrancial, formalizando em auto prisional a convalidação da captura em detenção. Nesse cenário, é vedado o interrogatório policial?; Tratando-se de captura de suspeito seguida da decretação de sua prisão em flagrante delito, não há vedação ao interrogatório policial, na dicção do artigo 18 da Lei 13.869/19. Entretanto, o Delegado de Polícia responsável observará os incisos I e II, do parágrafo único, do artigo 15 do mesmo diploma quanto ao interrogatório de mérito. Logo, se o preso em flagrante delito optar por exercer o direito ao silêncio ou por ser assistido por Advogado ou Defensor Público, o interrogatório de mérito, frise-se, a inquirição sobre os fatos imputados não será realizada, sob pena de caracterização de abuso; Em tal cenário, a Autoridade Policial terá duas opções: a) Se o preso concordar em ser ouvido e dispensar assistência jurídica: o interrogatório segue normalmente, com expressa menção à manifestação do interrogando; b) Se o preso concordar em ser ouvido mas requerer presença da defesa técnica: a autoridade então pode sobrestar o auto e aguardar a chegada do defensor. Se referida medida não se apresentar viável diante, por exemplo, da perspectiva de demora de comparecimento do defensor, será procedida a qualificação e a ciência da imputação, com encerramento do auto e prosseguindo a formalização da custódia e do auto prisional. A ausência de interrogatório de mérito não obsta a autuação em prisão em flagrante, bastando assinalar o exercício da autodefesa negativa do indiciado no corpo do auto de qualificação e interrogatório lavrado; 2ª) Indivíduo abordado de madrugada por policiais que, mediante pesquisa, verificam tratar-se de pessoa procurada pela Justiça, porquanto constar como fugitivo de unidade prisional. O sujeito é conduzido para a Delegacia de Polícia. Qual solução a ser adotada?: A captura de foragidos ou procurados não demanda a realização de interrogatório policial de mérito mas, somente, o registro da diligência em boletim de ocorrência. Entretanto, não se olvida da preservação dos direitos da pessoa presa; Se o mandado pendente for de prisão temporária ou preventiva, o cumprimento será comunicado à autoridade judicial que a decretou, nos termos do artigo 12, parágrafo único, inciso I da nova Lei de Abuso de Autoridade, assim como ao juiz do local da captura, consoante artigo 289-A, § 3º, do CPP. Tratando-se de simples recaptura de réu evadido (CPP, Art. 684), a prisão e o local onde se encontra serão comunicados à sua família ou pessoa por ele indicada, conforme inciso II, do mesmo artigo 12, parágrafo único, da Lei 13.869/2019. Não há óbice de que eventual versão do custodiado, desde que não constitua interrogatório de mérito, seja mencionada, resumidamente, no histórico do registro policial, onde constará, também, a identificação do responsável pela captura, em atenção ao artigo 5º, LXIV da Constituição Federal, assim como ao artigo 16, caput, da Lei 13.869/19; 3ª) Indivíduo surpreendido conduzindo veículo produto de roubo e apresentado na Delegacia de Polícia durante a madrugada. Na repartição, a vítima do roubo comparece e reconhece indubitavelmente o suspeito como sendo o roubador, fato delituoso praticado dias antes. Nesta hipótese, é vedado o interrogatório no período de repouso noturno?: Na hipótese em comento, é importante destacar que, se o Delegado de Polícia decretar a prisão em flagrante do capturado pode incorrer no crime do artigo 9º, caput, da nova Lei de Abuso de Autoridade, porquanto ausentes os requisitos legais, em especial o requisito temporal consubstanciado nas situações dos incisos do artigo 302 do CPP, lembrando que a decretação da custódia flagrancial também reclama a presença do requisito probatório, retratado na fundada suspeita do artigo 304, § 1º do CPP. A ausência dos referidos requisitos legais implica a situação denominada de criptoflagrante e eventual decretação da prisão flagrancial, como espécie do gênero decisão de indiciamento, reveste-se de ilegalidade por desrespeito ao artigo 2º, § 6º, da Lei 12.830/2013, sujeitando-se a relaxamento pela autoridade judicial (CPP, Art. 310, inciso I)[11]; No cenário descrito, o Delegado de Polícia responsável avaliará a necessidade ou não da prisão temporária. Se não a reputar necessária, será elaborado registro circunstanciado dos fatos, considerando que a autoria e a materialidade já estão apuradas, no esteio de posição do Tribunal de Justiça Paulista (HC 258.223-3/6). Já na hipótese de entender necessário o cárcere provisório, diante do conjunto probatório coligido (oitivas, reconhecimento pessoal positivo etc.) e da imprescindibilidade para as investigações, representará de pronto pela prisão temporária, consoante orientação jurisprudencial (STF, HC 107.644-SP, j.06/09/2011 e STJ, RHC 25.475-SP, j.16/09/2010); No tocante ao indiciamento do indivíduo em tais circunstâncias, decretada a prisão temporária no plantão judiciário (Lei 7.960/89, Art.5º) e caso decidido pelo indiciamento, o interrogatório de mérito só poderá ser realizado se o indiciado estiver devidamente assistido e optar por prestar sua versão dos fatos (autodefesa positiva). Do contrário, o ato será limitado à qualificação e à ciência da imputação, preservando as garantias processuais, notadamente a permanência em silêncio e a não autoincriminação, sem prejuízo da opção por posterior decisão de indiciamento, a ensejar o interrogatório oportunamente, ainda que indireto e em sede de inquérito policial deflagrado por portaria; 4ª) Hipótese similar à anterior, porém envolvendo fato pretérito de infração penal não elencada no rol que autoriza prisão temporária: A título de exemplo, é o caso de indivíduo surpreendido conduzindo veículo furtado que, apresentado na delegacia, verifica-se ser ele o autor da subtração, perpetrada dias antes; Não há que se falar em flagrante delito. O sujeito conduzido não está tecnicamente preso e, ainda que se encontre no período de repouso noturno, não haverá óbice para que, uma vez decidido pelo seu indiciamento, seja promovido o interrogatório, asseguradas sempre as garantias do indiciado de permanecer em silêncio e de solicitar defesa técnica para o ato) https://jus.com.br/artigos/78104/a-nova-lei-de-abuso-de-autoridade-lei-n-13-869-19-e-os-limites-ao-interrogatorio-policial-do-preso-durante-o-repouso-noturno